KATUKINA
Nomes alternativos: Tukuna
Classificação lingüística: Katukina
População: 450 (2007)
Local: Amazonas
Designa dois grupos indígenas, da família Katukina, que autodenominam-se Peda Djapá (“Gente da Onça”). Vivem em diversos grupos no rio Biá, afluente do Jataí e Amazonas. Existem aproximadamente 220 índios.
Os Katukina de língua da Família Pano, vivem no rio Envira, nas margens do rio Gregório, juntamente com os Yawanawá, na área indígena Rio Gregório, Acre, e na área indígena de Campinas. Os Katukina já foram chamados, por muitos viajantes, como “índios barbados” por causa do costume de pintar a boca de preto. A troca de cônjuges é bastante comum, mas os filhos sempre ficam com a mãe.
A mitologia katukina faz parte do complexo regional, girando em torno de dois heróis culturais criadores do mundo, dos Tükuna, dos outros índios e do "branco": Tamakori e Kirak. Ao contrário dos Madiha e em conformação com os Kanamari, Tamakori exerce quase sempre o papel do sábio e Kirak o papel de quem estraga tudo.
Mas são os estragos de Kirak que criam o mundo tal como ele é: por exemplo, por chorar na morte do seu filho condenou os Tükuna a não ressuscitarem após a morte. Ele é visto como uma criança, não fisicamente mas em relação ao saber, e a voz dele é de uma criança, sempre perguntando para o irmão o que vão fazer agora.
A jornada de Tamakori e Kirak entre os Katukina se diferencia dos Kanamari por não ser relacionada diretamente à criação dos rios e não se passar durante uma jornada rio abaixo. A origem da água terrestre é contada em um mito em que não aparecem Tamakori e Kirak.
Todavia, a gesta de Tamakori e Kirak aparece bem como a formação do mundo atual, sendo o céu produto de sua ação, a partir de um pedaço de terra arrancado e levado pouco a pouco, ao som dos cantos do Kohana (principal festa Katukina).
Tamakori e Kirak também dão origem às diferentes populações humanas, cada uma com seu conhecimento próprio, como as cidades para os brancos e os rituais Kohana e Alao para os Tükuna.
O Kohana foi cantado pela primeira vez por Tamakori, e o Alao é o ritual de Kirak. Na jornada desses heróis também é criada a primeira mulher.
No fim do mito eles se separam, de modo que Tamakori vai morar no leste e Kirak no oeste, cada um com seu povo. Eles moram onde o céu encontra a terra e de lá não influem diretamente na vida dos Tükuna.
Estão presentes através dos ciclos da lua e do sol comandados pelos mesmos, ou durante eventos como os arco-íris. A chuva também vem deles, chuva grande do leste por Tamakori e chuva rara e fina do oeste por Kirak.
A mitologia katukina não é formada unicamente pelo ciclo de Tamakori. Existem vários outros mitos protagonizados por animais sob forma humana ou humanos, chamados de pai kidak, termo de parentesco pelo qual são chamados os homens da geração dos bisavós.
Nesses mitos são tematizadas as relações com animais, com espíritos de árvores ou seres poderosos como o Adyaba i tyai (um ogro devorador de criança, "Adyaba de dente comprido"), o Adyabatiri (dono do poder de caça que deu origem ao uso do veneno da Phyllomedusa, para fins propiciatórios).
Segundo os Katukina, esses mitos explicam como os bichos viraram bichos mesmo, ou seja, explicam a diferenciação das espécies a partir de um mundo onde os animais têm atributos da humanidade, permitindo uma comunicação inter-específica.
Mas a mitologia katukina reflete também a história katukina. Por exemplo, no mito de Tokaneri, herói que viaja pelas aldeias transformando os habitantes em animais de acordo com o que eles comem.
Os comedores de peixe viram ariranhas, os comedores de Oxi (fruta gordurosa) viram queixadas... E é com a ajuda de um livro que ocorre a transformação: ele simplesmente escreve no livro "quem come isso vai virar tal bicho" e pronto.
No fim do mito ele morre engolido por uma sucuri gigante, antes de transformar toda a humanidade. Um segundo exemplo de mito incorpora a estória de Pedro Malazarte, presente no folclore nordestino e que circulava nos seringais.
Para os Katukina, Pedro é um índio enganando o branco, e as aventuras são as mesmas, diferindo só na parte final, quando Pedro sobe ao céu, encontra Adão e Topana.
Para os Katukina, Pedro é um índio enganando o branco, e as aventuras são as mesmas, diferindo só na parte final, quando Pedro sobe ao céu, encontra Adão e Topana.
Este o manda de volta à terra para verificar o que aconteceu depois de um dilúvio. Lá Pedro começa a comer os mortos e se transforma em urubu, enquanto Topana desce com o livro para recriar a humanidade e os bichos.
COSMOLOGIA E XAMANISMO
Depois de organizarem o mundo tal como é hoje, Tamakori e Kirak se retiraram e não influenciam diretamente a vida cotidiana e ritual dos Katukina.
A manutenção do mundo ocorre por meio do ciclo do sol, originado por Kirak e da lua, por Tamakori. Topana foi então incorporado no lugar central que ele tem nas religiões cristãs: no céu, ligado ao destino depois da morte.
Todavia essa figura é instável e seu papel varia de acordo com o contexto, podendo ser um equivalente a Tamakori, ou então Tamakori pode "trabalhar" para ele, ou ainda ele pode estar num outro céu, dos brancos, nesse caso sem influência na vida e morte dos Katukina.
O mundo onde os Katukina vivem é um patamar intermediário entre dois céus e os mundos subterrâneos cujo conhecimento é menos difundido, podendo ser um só ou vários... O primeiro céu é o Kodohdi, que é formado por uma parte arrancada do "nosso mundo" por Tamakori e Kirak.
É ali que vivem os mortos dançando e comendo. Ele é similar a este mundo, com animais, frutas e espíritos. Acima dele há o Ipina, lugar mais triste ("tudo de ferro"), onde vão os que foram mordidos por cobra (mesmo sobrevivendo), aqueles que foram mortos e os matadores. Embaixo há o mundo dos Don Mïn Pönhiki, "gente das vísceras de peixe".
Esse mundo é similar ao mundo dos Tükuna, mas lá a água é clara, pura, e a predação é limitada. Ali os humanos tem uma pele branca e caçam muito pouco, sendo mais pescadores, e lá não tem onça nem cobra.
As passagens entre esse mundo e o dos Tükuna geralmente são nas cabeceiras dos igarapés, chamadas de Wiri mï, "buraco das queixadas". Esses lugares servem de ponto de fuga para as queixadas e outras presas das caçadas.
No patamar inferior haveria também outros humanos, mas não se sabe muita coisa sobre esse mundo, pois não existem relatos de quem tenha ido até lá, como existe para o primeiro céu e o primeiro mundo subterrâneo.
O patamar dos Tükuna pode ser dividido em três grandes ambientes: o Ityonin, a floresta onde vivem os humanos; o mundo subaquático, domínio dos espíritos da água, os Hïmanya; e o mundo de dentro da terra, que é dos espíritos Baradyahi.
A interação entre esses três ambientes constituem o cotidiano dos Katukina. O domínio de caça dos humanos e dos espíritos é o mesmo, a floresta (o Ityonin), nesse sentido são concorrentes.
Esses espíritos tem relações especiais com alguns animais que são presas dos humanos, por isso é preciso ter muito cuidado para andar no mato ou remar no rio, afim de não despertar sua ira. Em certos casos esses espíritos podem ser considerados protetores de algumas espécies de animais.
O termo usado para designar os espíritos é Owei, mas esse termo não se aplica só às entidades que moram no patamar dos Tükuna, mas também àquelas no patamar celeste.
Os Owei celestes interagem de maneira diferente com os Katukina e são fundamentais nas festas.
O primeiro tipo de espírito que pode se encontrar no patamar onde vivem os Katukina são os ogros Baradyahi e Hïmanya. Esses seres não moram na terra, mas podem ser vistos caçando na floresta. Os Baladyahi moram dentro da terra em aldeias grandes, são pretos e podem subir na terra pelos barrancos.
Os Hïmanyan são a contra-parte aquática dos Baradyahi, provocando as turbulências nas águas. São descritos ora como grande cobra, ora como boi (quando saem da água), mas podem ter aparência humana (especialmente para o xamã).
De fato existem vários tipos de Hïmanyan e esse termo designa ora todos os espíritos da água, ora um especifico associado às piranhas, o qual aparece sob forma de cobra. Existe também o espírito Hïdak, protetor dos quelônios, e o espírito Kotomoknin, protetor das antas.
Os Baladyahi eram Tükuna, mas por terem matado e queimado Kilak, Tamakoli os levou ao barranco e os deixou afundarem no barro. Os Hïmanyan moram na água, sendo o tracajá seu banco, a sucuri sua corda e o jacaré sua “vovó”.
No mato vivem os Owei das árvores, pequenos espíritos ligados a algumas espécies altas. Eles moram na árvore em casal, o macho na copa da árvore e a fêmea nas raízes. Normalmente são invisíveis, mas se você fica por alguma razão uma noite no mato, pode ouvir e até vê-los.
Esses espíritos são temidos pelos Katukina em virtude de seus poderes xamânicos e capacidade de roubar almas (Wäko tan) para transformá-las em espírito (sobretudo os Hïmanyua e Baradyahi).
Eles são atraídos pelo cheiro do sangue, que indica que um animal protegido foi matado, bem como o cheiro do sangue menstrual, o que leva os Katukina a tomarem grande cuidado na hora de cortar presas ou peixe (longe da água, cuja correnteza levaria o cheiro para lugares aonde têm espíritos), e traz restrições para o casal em resguardo pós-parto ou durante a menstruação (como não tomar banho no rio, e evitar sair na floresta...)
Ao contrário dos outros, o terceiro tipo de Owei que pode se encontrar na terra é menos temido, o “Owei alma”. Esse é um dos componentes da pessoa que se separa no momento da morte, quando diversas “almas" são liberadas ou aparecem e cada uma delas tem seu próprio destino “Pos-mortem”:
-Wäko Tan, “alma verdadeira”, aquela que tem um destino pos-mortem no céu, onde passa a viver como na terra. Inicialmente ela sai do corpo e sobe diretamente. Quando viva manifesta-se pela fala, koni, e sob a forma do sangue (Mimï) e do coração (Diyahkon). Essas emanações vão para o céu, pois o morto “não precisa mais delas”. É essa alma que é o alvo dos ataques dos espíritos.
- Alma Owei, é dita um resíduo da alma verdadeira que não sobe ao céu, sendo possivelmente um tipo de sombra, ou duplo. Ela pode tomar a forma de um rato e ficar perto das aldeias, vigiando os parentes do defunto e carregando sua saudade. Pode provocar leve doença, principalmente diarreia, mas não por maldade, não tendo poder xamânico.
- Alma onça, Pïda, essa é a parte em nós que gosta de comer carne, visível através do “sangue grande”. Essa alma vai virar uma onça de verdade, a menos que um pajé a capture.
- Alma boto cor-de-rosa, Wapikaru, contra-parte aquática da alma onça, corresponde a parte em nós que gosta de peixe; ela é visível através do pulso, mas não nos braços. Se não é familiarizada pelo pajé, vira boto de verdade.
- Alma lontra pequena, Wodyon, corresponde ao pulso e veias dos braços. Como as duas precedentes, vira lontra se não for familiarizada pelo pajé. Os espíritos auxiliares do xamã
Os espíritos auxiliares do xamã, tanto na espionagem quanto nas comunicações com outros xamãs ou na guerra, são também chamados de Owei. Portanto não são nem espíritos das árvores familiarizados, nem Baladyhi ou Hïmanyan.
São também considerados pajés por seus poderes de agressão. Os Owei auxiliares do pajé são de fato uma “criação” dele, que passa por um processo de captura ou familiarização das diversas almas dos mortos.
O xamanismo Katukina é muito parecido com o xamanismo Madiha e Kanamari, localmente chamados de xamanismo de "pedra", pois usam agentes patogênicos que podem ter a aparência de pedra, em Kanamari e Katukina, Dyohko. É ele que provoca a doença e, na cura, o xamã tem que extrair o Dyohko do corpo do paciente afim de assegurar sua recuperação.
Para se tornar xamã é preciso aprender a controlar um dyohko que um outro xamã vai colocar em você, o qual vai permitir a comunicação com o mundo dos espíritos e a aquisição de mais Dyohko, sugando os dos pacientes ou trocando com outros pajés.
Mas a diferença entre o xamanismo entre os Katukina e os Kanamari está no fato que os Dyohko não são as únicas ferramentas dos xamãs, pois eles têm a possibilidade de controlar e até criar espíritos a partir de partes de animais, como pelos do jaguar, mas sobretudo a partir das almas.
À exceção das “almas verdadeiras”, todas podem ser familiarizadas pelo pajé por meio de técnicas específicas. Assim, para conseguir uma alma-onça ele vai ter que lutar e capturá-la, o que só é possível aos Baohi tan (baohi=pagé; tan=verdadeiro). Com as outras almas basta conversar e negociar.
Mas essa familiarização é só o início do processo que vai converter essas almas em auxiliares do xamã. Uma vez as almas sob controle, dentro da barriga dele, o pajé deve pouco a pouco moldá-las, colocando dyohko nelas.
No caso da onça, para torná-la mais forte e convertê-la numa arma poderosa que pode ser enviada longe para matar. São esses espíritos auxiliares que o pajé envia para espiar uma aldeia inimiga, ou para dizimá-la. Já falei que pajé se diz baohi, mas pode também ser designado por Owei wara-hi, que significa “dono-corpo” de Owei.
De fato o poder do xamã está na capacidade de conseguir espíritos auxiliares, e não nas coleções de dyohko que pode adquirir.
Os espíritos celestes são bem diferentes daqueles dos patamares inferiores, pois não são espécies, mas sim personagens individualizados. Contudo, são também chamados de Owei.
Esses espíritos têm nomes e aparência específica. Por exemplo, o Kodomari é descrito com uma aparência humana, grande, branco e de cabelo preto e comprido. Eles são poderosos e temidos pelos katukina, pois podem mandar dyohko potentes.
No entanto, eles não são deuses caçadores de humanos, e descem à terra apenas nos rituais. A cada ritual um ou dois desses deuses descem nas aldeias para verificar se os Tükuna estão fazendo como tem que ser feito.
Esses deuses vêm para vigiar as festas e beber os diferentes mingaus, mas têm uma vida própria e podem brigar até se matar. Se há coisas erradas nos Tükuna, eles castigam mandando dyohko. Essa ligação com as festas faz com que eles possam ser nomeados em função da festa onde atuam.
Assim, na festa Pïda, “onça” ou espírito se chama Pïda-wara. Aqui se reconhece a mesma sufixação de Wara (corpo-dono) usado para nomear os espíritos das árvores.
No primeiro patamar celeste as almas vivem como na terra. Dançam (o que provoca trovoadas), comem, caçam, têm roçados grandes, com muitas frutas de grande tamanho. No patamar celeste, devido a igualdade entre o mundo aonde vão as almas verdadeiras e o mundo terrestre, se encontram também os espíritos das árvores, mas eles não interferem na vida na terra.
De maneira geral os produtos do roçado na terra foram trazidos por um ser celestial que casou com uma mulher Tükuna. No momento da morte as almas verdadeiras vão diretamente a esse mundo, mas elas podem voltar para beber água que foi deixada acima do túmulo onde se encontra seu corpo.
Nessa subida para o céu, há uma versão em que as almas chegam, são recebidas com festas, casam logo e passam a viver felizmente. O destino é diferente apenas para aqueles que foram mordidos por cobra, que vão atravessar esse patamar e entrar no Ipina.
Lá vão também as almas dos matadores de gente e suas vítimas, as quais chegam primeiro para vingar a sua morte. Uma vez flechado, o matador cai de novo na terra e se transforma em cogumelos em árvores podres. Somente uma parte da alma volta para o Ipina, de tamanho menor.
Mas há também uma versão em que as almas não se vingam e passam a ser responsabilidade de Topana, o que ocorre fora do Ipina. Quando as almas chegam no céu, depois de terem evitado uma onça predatória, elas são recebidas por Topana, que vai furar-lhes os olhos.
Quando escorregar, o líquido do olho vai se transformar em chuva (trovoadas e chuva são tidas como sinal que a alma chegou bem no céu, que teve olhos furados e dança). No caso dos matadores, Topana se recusa a furar os olhos e os manda de volta sob forma de cogumelo.
Topana aparece então como um deus controlador do céu, julgando as almas dos recém mortos. Todavia, apesar de ser colocada numa posição importante no céu, a figura de Topana não se encontra presente na principal ligação que une os vivos com o mundo celeste: os rituais.