KULINA
Nomes alternativos: Kurína, Kolína,
Curina ou Colina, Madiha
Classificação linguística: Arawa
População: 2.537 (Opan – 2002)
Local: Acre, Amazonas
São também chamados de Kurína, Kolína, Curina ou Colina, e vivem em pequenos grupos. Quando se casa, o homem vive na casa da família da esposa e tem que trabalhar para retribuir a mulher. Cada casal tem a obrigação de gerar pelo menos três filhos, ganhando o direito de construir uma casa separada e continuando juntos se desejar.
Eles acreditam que a concepção acontece sem qualquer contribuição feminina, e para engravidar, a mulher tanto pode relacionar-se apenas com o marido ou ter vários parceiros. Em qualquer dos casos, ela é a única responsável pelos cuidados com a criança.
Vivendo nas margens dos rios Juruá e Purus, os Kulina destacam-se pelo vigor com que mantêm suas instituições culturais, entre elas a música e o xamanismo. Um exemplo disso é que, apesar do antigo contato com brancos e da proximidade de algumas aldeias com centros urbanos, não se tem conhecimento de nenhum Kulina vivendo fora de suas terras.
A cosmologia Kulina encontra em sua cosmografia um delimitador espacial para os seres, espíritos animais e plantas. Trata-se resumidamente de sua concepção visual do céu, da terra e dos lugares que homens e animais nela ocupam de um ponto de vista geocêntrico. Essa cosmografia supõe a existência de camadas e, nelas, locais. As camadas basicamente seriam meme ("céu"), Nami ("terra") e Nami budi ("embaixo da terra"). Há também Dsamarini ("o lugar da água") e outras duas distinções do céu que são pouco citadas.
Crianças, homens, velhos e mortos ocupam lugares distintos nessa cosmografia e no sistema de reciprocidade, sendo as categorias etárias nativas organizadas segundo o esquema abaixo:
Crianças nono: recém-nascido; não gente ejedeni:- criança; gente
Jovens dsabisso/dsohuato: (rapaz/moça) adolescente; até o casamento maqquideje dsabisso (homem rapaz) e amoneje dsohuato (mulher moça): jovens casados e sem filhos
Adultos maqquideje/ amoneje: homem/mulher casados, com filhos, casa e roça jadahi/ jadani: velho/velha Morto: não gente
Os homens, bichos e plantas vivem em nami ("terra"), enquanto que os espíritos ocupam o mundo subterrâneo, nami budi. Os bichos e animais de caça também vivem em nami budi, subindo à terra para serem caçados pelos homens.
O pajé, quando bebe rami ("ayahuasca") ou através de seus sonhos, entra em contato com o mundo de Nami budi, visitando as grandes aldeias subterrâneas onde vivem os espíritos ou trazendo os animais para a superfície, próximos da aldeia. Para tanto, ele se transforma em animal também, sendo que os próprios animais de Nami budi são espíritos metamorfoseados.
Utilizo o termo transformação para indicar o processo de modificação do animal em pessoa, e metamorfose como o processo de modificação do espírito em animal, não em oposição um ao outro. Esse ciclo de transformações está na base de um sistema de oposições, operando numa cosmovisão que pode ser sintetizada da seguinte maneira:
Segundo o ciclo, o ser não domesticado, o nono, representado pela floresta (natureza, masculino), é domesticado através da ingestão de alimentos produzidos nas roças, pelas substâncias femininas (leite materno e saliva), pela aprendizagem e compreensão dos mitos e música, até tornar-se o mais próximo possível de um ser totalmente sociável.
Após a vida adulta, este ser sociável - maqquideje ou jadahi, tem duas formas para voltar à natureza, sua origem: após a morte, quando o seu espírito irá vai até nami budi, para as aldeias de seus dos antepassados, ou transformando-se em animal de caça, ou através da metamorfose do xamã em animais selvagens (normalmente o queixada).
O xamã, auxiliado pelo seu tokorimé (espírito, duplo, imagem, normalmente o queixada), vai a Nami budi, o local dos mortos e, por identificar seu Tokorimé animal com o dos outros espíritos de mortos metamorfoseados em queixadas, consegue trazê-los à superfície, próximos à aldeia, para então serem onde serão, por indicação do xamã, caçados e posteriormente devorados.
No final do ciclo de transformações os espíritos são caçados e comidos pelos vivos, o que sugere um tipo de endocanibalismo, necessário para fazer com que o espírito do morto seja incorporado novamente ao sistema de reciprocidade, por ele abruptamente abandonado ao morrer.
Durante esse ciclo, o corpo físico/selvagem dirige-se em direção à aldeia, mundo da sociabilidade. De outra parte, o corpo espiritual/domesticado dirige-se à floresta, mundo selvagem, ainda não domesticado.
Há uma relação entre o corpo físico e o mundo social, assim como do corpo espiritual com o mundo da natureza, onde o mundo da sociabilidade é o dos vivos, enquanto que o mundo da floresta selvagem está relacionado aos espíritos: os mortos.
Assim sendo, esse corpo espiritual/domesticado, no seu mais alto grau, dirige-se ao mundo da natureza e retorna como corpo físico/selvagem, através de práticas xamânicas ou da morte - as transformações de um e outro encontrando nos respectivos extremos seu lugar para acontecer.
Em síntese, os elementos do sistema cosmológico são: homens que vivem em cima da terra e bichos que vivem embaixo da terra. A relação entre homens e bichos se dá através da alimentação, na forma de carne de caça, ou através do xamã, que os traz do mundo subterrâneo para a superfície, neles transformando-se.
Observando as habitações Madija, percebe-se na sua parte posterior essa distinção relacional. Humanos vivem sobre o assoalho de paxiúba, onde se come, dorme, refugia-se e é limpo. Animais vivem sob a casa, separados pelo assoalho, sendo a ligação entre eles de reciprocidade.
Nessas habitações, que seguem o padrão ribeirinho, processa-se o alimento na parte posterior, sendo que todos os resíduos - sólidos ou líquidos - atravessam o assoalho chegando até os porcos e outros animais que lá habitam.
Como os porcos e os outros animais transformar-se-ão em alimento, se estabelece uma forma equilibrada de reciprocidade, que, a despeito de ter uma disposição espacial importada do padrão regional, respalda-se em categorias nativas de troca.
Xamanismo
Para os Kulina a doença é basicamente causada por Dori ("feitiço"), que se manifesta na forma de um objeto que entra no corpo da vítima através de inserção mágica, podendo ser uma pequena pedra, um pedaço de pau ou osso, que causará muita dor no corpo do doente.
Embora reconheçam hoje em dia que há doenças que não são Dori - as doenças de branco, Dsama coma, literalmente "terra doente", seu sistema de crenças invariavelmente as atribuem ao Dori que, se não as provoca diretamente, atua no sentido de predispor o outro a adoecer.
Quem lança o Dori é sempre o Dsopinejé ("xamã"), que jamais age contra alguém de seu próprio Sib.
Dessa forma, ou há um xamã de um sib rival na aldeia ou ela veio de fora, de Madija ou não. Muitos conflitos aconteceram, e ainda acontecem, por conta disso na forma do Manaco negativo (vingança) entre Kulina de localidades diferentes ou outras tribos.
Dessa forma, ou há um xamã de um sib rival na aldeia ou ela veio de fora, de Madija ou não. Muitos conflitos aconteceram, e ainda acontecem, por conta disso na forma do Manaco negativo (vingança) entre Kulina de localidades diferentes ou outras tribos.
As explicações higienistas de que muitas das doenças nos chegam através das fezes de humanos e animais (como os porcos), na forma de um micro-organismo, não encontra ressonância nas categorias nativas, dificultando a ação de agentes de saúde.
Por exemplo, no domínio simbólico os porcos, assemelhados aos queixada (Jidsama, que pode ser o porco doméstico ou o do mato), cumprem um papel especial nos mitos (ciclo de transformações), ritos (a Coidsa: festa da caiçuma, onde homens e mulheres alternadamente apresentam-se coreograficamente uns aos outros como Jidsamas e se oferecem caiçuma para beber) e na dieta alimentar kulina.
Os porcos também são freqüentemente incorporados pelo xamã como um animal de poder: um Tokorimé ("espírito"). No plano físico são identificados como exemplares da própria vida social dos Kulina, por serem domesticáveis e agirem comunitariamente.
A MÚSICA NO XAMANISMO...
A categoria de música ritualística chama-se Ajie (arrié), que pode ser traduzido por música lendária. Muitos Ajie são antigos e de cunho xamanístico, e normalmente são usados em sessões de cura para extrair o feitiço ("Dori") do corpo do doente, conforme procedimentos similares descritos em outras etnias.
Segundo os Kulina, nessas sessões ocorre uma inserção no corpo do doente, das canções de cura que são cantadas pelo xamã e pelas mulheres, em grupo, acompanhadas de defumações de tabaco, resultando às vezes, após noites de trabalho, na remoção de um pequeno objeto, normalmente uma pequena pedra ou uma espinha de peixe que se encontrava dentro do corpo do doente e causava a doença. Esse objeto teria sido jogado, como um dardo, por um xamã de outro Sib ou de outra etnia.
Como um domínio masculino, os cantos xamânicos -de Ajie- e os cantos de rami jinede os mariri rami são criados apenas por homens, xamãs a maior parte das vezes ou pretendentes a sê-lo.
Durante o Mariri rami há um mestre cantor especialista, aquele que sabe e canta as estrofes que são repetidas pelos outros participantes da cerimônia, mais ou menos uma hora após a ingestão da infusão de Ayahuasca.
Já nos rituais xamanísticos, Toccorimecca ajie ("cantos do espírito"), há a participação ativa das mulheres, que cantam para domesticar o Dori selvagem do corpo do doente, canções essas que são ensinadas e ensaiadas pelo xamã para esse fim.
Já nos rituais xamanísticos, Toccorimecca ajie ("cantos do espírito"), há a participação ativa das mulheres, que cantam para domesticar o Dori selvagem do corpo do doente, canções essas que são ensinadas e ensaiadas pelo xamã para esse fim.
Está implícita na ideia de atirar um Dori em alguém a noção de que, apesar de se tratar de um objeto independente, ele carrega as características de quem o atirou.
São os cantos que irão proporcionar a cura, através da domesticação desse Dori, primeiro através dos Tokorime (espíritos que os controlam), seguidos das canções que ensinam ao elemento estranho, causador do desequilíbrio, a harmonizar-se no novo sistema de reciprocidades e dele passar a fazer parte.
Essa dualidade em relação ao Dori encaixa-se no dualismo do ciclo de transformações de natureza e cultura, onde realizar a cura passa pela transformação da doença, que é Dori de natureza selvagem, através da canção, numa espécie de ressocialização do Dori.
O Xamã precisa possuir conhecimento e controle sobre suas duas polaridades: a selvagem e a domesticada. É com o Dori selvagem que ele poderá causar doenças, pois xamãs também são, noutro plano, guerreiros, e em caso de rivalidades ou da necessidade de praticar Manaco negativo usam seu poder para enviar ou devolver o Dori ao inimigo.
Como o próprio xamã possui dentro de si o Dori, é apenas sua extrapolação dos limites da sociabilidade que o transforma em desequilíbrio e doença: apenas para quem lhe é estranho atua causando doença.
Ainda como elementos de comparação, estão certas atitudes em relação ao Dori. O ato de mandá-lo a alguém (ou para uma aldeia) é individual e masculino, pois é o xamã quem solitariamente envia o Dori.
Os Xamãs são na sua quase totalidade homens, no entanto o ato de curar e transformar é coletivo, e basicamente feminino, pois embora seja o Xamã quem dirija o ritual, ele é composto por muitas mulheres em grupo, cantando junto ao doente. Sem elas, a cura não acontece.
Nesse sentido, a doença é criada por um único indivíduo, representando a natureza exterior, distante daquele que a recebe (a floresta, a tribo distante, o inimigo desconhecido, de fora do seu próprio sistema de reciprocidade), e a saúde pelo coletivo, pela cultura.